Tenho certeza de que vou conquistar sua atenção se começar este texto dizendo que o mundo está cada vez mais chato para os carros e para quem curte dirigir e acelerar. Gasolina cara, carros “de plástico”, demonização dos carros e dos motoristas, dia mundial sem carro, controles de emissões, Fórmula 1 sem ronco, Fórmula E roubando a cena, carros autônomos. Por que não podemos voltar para os bons tempos? Simples: porque os bons tempos só parecem bons depois que você os deixa para trás. E não lamente por não ter um DeLorean do Dr. Emmett Lathrop Brown. Você não precisa voltar no tempo para curtir os bons tempos dos carros. Você já está vivendo a melhor época para ser um entusiasta em toda a história.
Em 2011, Jeremy Clarkson juntou-se ao pessoal da Turn10 Studios para gravar a narração do emotivo vídeo “Edangered Species”, um manifesto sobre o futuro sombrio que aguardava os entusiastas. O vídeo começa com uma nota de esclarecimento sobre as manobras, algo necessário nesses tempos modernos em que algumas pessoas parecem ter esquecido como se pensa. Em seguida, o curta começa a contar uma situação em que um cara preso no trânsito se revolta e tenta escapar daquele pesadelo automotivo com um Aston Martin e manobras dignas do WRC, mas a cada curva topa com um problema típico das cidades modernas até que, no fim, é capturado pelos tiras.
Sim, é uma representação realista do mundo moderno, repleto de radares, ruas congestionadas, asfalto ruim e tudo mais. E como diz Clarkson, os quilômetros por litro importam mais que os quilômetros por hora hoje em dia. É verdade. Mas apesar do realismo, aquele não foi o prenúncio de tempos difíceis para os fãs de carros. Foi apenas uma forma de te convencer a curtir os carros na sala de casa com um XBox e uma cópia de Forza Motorsport 4.
Cinco anos se passaram desde aquele período meio conturbado do planeta, e todos os nossos temores automotivos se concretizaram: os carros elétricos e autônomos são uma realidade e devem se tornar um padrão em um futuro próximo, há uma preocupação majoritária com a segurança, eficiência e não tanto com o desempenho e todas aquelas reações orgânicas dos carros. Pior: a perseguição aos carros continua em nome de um mundo melhor e um trânsito mais “humano” (como se não houvesse um humano ao volante do carro). Temos reduções de velocidade aleatórias, e até um inexplicável “dia mundial sem carro”, que ironicamente é o melhor dia do ano para se dirigir — sem falar nos tributos, taxas, pedágios estacionamentos caros, restrição de estacionamento…
E se o presente é caótico, o futuro não parece muito melhor. Os fabricantes estão nos afastando do conhecimento técnico sobre os carros — em parte involuntariamente devido à eletrônica embarcada que é um tanto inacessível por sua natureza, em parte devido a uma suposta tendência observada em clínicas com consumidores, que concluiu que eles procuram, resumidamente, gadgets sobre rodas. Depois temos as previsões fatalistas sobre as reservas de petróleo, as emissões que vão nos matar e aquecer o planeta e matar quem sobreviver.
O “tablet” é maior que o volante…
Mas em meio ao pessimismo automotivo, se você pegar seu carro e sair para dirigir tranquilamente por aquela estradinha que só você conhece enquanto pensa na vida, você cedo ou tarde chegará à conclusão de que o mundo nunca foi tão favorável para quem curte carros, quem curte mexer nos seus carros, quem curte dirigir e correr com seus carros. É sério.
Vamos começar com os extremos: os esportivos e supercarros chegam todos a velocidades entre 330 e 370 km/h, mas agora eles bebem tanta gasolina quanto seu primeiro walkmachine (que você abastecia com óleo, gasolina e naftalina, lembra?). Veja por exemplo o McLaren 650S: um esportivo de 650 cv, que chega aos 330 km/h e vai de zero a 100 km/h em três segundos. Sabe quanto ele roda com um litro de combustível? 8,5 km. Isso é mais ou menos o que um Omega CD 4.1 conseguia rodar.
E você certamente já ouviu Jeremy Clarkson lamentando que o Aventador é “fácil demais” para guiar, ou de tiozinhos nostálgicos dizendo que o Nissan GT-R é videogame. Sabe o que isso significa? Que você não precisa mais correr o risco de se matar para curtir um carro veloz e potente. Que você não precisa mais de 20 anos de experiência ao volante para domar um carro de 500 cv. Hoje qualquer socialite consegue dirigir um esportivo em alta velocidade. E pode ter certeza: esses carros não são menos emocionantes por isso.
Descendo a rampa, chegamos aos carros comuns. Em 1967, meu avô, o sr. Primo Contesini, tinha um Simca Tufão, como esse aí da foto abaixo. Era o sedã médio familiar da época, com espaço para toda a família e sua bagagem. Seu motor era um V8 2.4 de 130 cv que, com sorte, o levava aos 160 km/h. Hoje essa velocidade é facilmente obtida por um carro 1.0 moderno e os sedãs familiares estão na faixa dos 150 a 200 cv. Todos eles passam (e muito) destes 160 km/h. E a maioria deles tem um bom comportamento dinâmico. Você não precisa procurar muito para encontrar diversão ao volante.
E ainda tem o downsizing, algo ainda raro por aqui, mas que já se tornou o padrão no mundo evoluído. O downsizing significa que agora, para ter 200 cv à disposição dos seus pés, você não precisa gastar um monte de dinheiro em gasolina. A velocidade está lá, a emoção de dirigir está lá, o ronco do motor continua lá — diferente, mas ainda presente —, mas gastar menos gasolina significa que você pode dirigir mais. E dirigir mais é sempre o melhor resultado.
Aliás, essa guinada brusca em direção ao downsizing foi uma das consquências surgidas após a crise, quando o barril do petróleo disparou para mais de US$ 100, um cenário que tornou o mundo automotivo ainda mais sombrio. Mas aí os americanos descobriram uma forma viável de produzir petróleo de xisto e os preços despencaram enquanto a reserva de petróleo voltou a crescer. Para resumir a história: o petróleo só vai acabar quando não precisarmos mais dele.
Mas se você é do tipo que curte um carro à moda antiga e curte meter a mão na graxa, esta também é uma época excelente para isso. Veja o nosso Project Cars: mais de 300 leitores participando. Mais de 300 carros sendo modificados, restaurados, preparados, construídos ou personalizados. Apesar dos tempos difíceis por essas terras de Santa Cruz, fazer um carro divertido em casa nunca foi tão fácil.
Nosso colaborador Alexandre Garcia já contou algumas vezes as dificuldades de se obter informações na era pré-internet. E qualquer um que tenha uma pilha de discos ruins comprados por causa de um mísero hit pode confirmar. Há fóruns e sites inteiros dedicados a um modelo, uma versão, um motor. Há livros digitais, livros digitalizados, livrarias online, manuais online. Em breve teremos até realidade aumentada para nos ajudar a fazer tudo em casa.
E nao só isso: você nao precisa mais garimpar as lojas de peças e ferros-velhos da região ao longo de 50 finais de semana: está tudo na internet, esperando compradores. Pague com dinheiro virtual e receba a peça real depois de algumas semanas, na porta da garagem. A facilidade aumentou a demanda, que aumentou a oferta e agora também temos opções de sobra para os projetos.
E na hora de acelerar seu Project Car, seu sedã médio de 200 cv, seu popular mais rápido que um Simca ou seu supercarro que bebe pouco, se as estradas estiverem cheias de radares, tudo bem: nunca houve tantos track days, hot laps, time attacks, pro solos e afins — aqui e lá fora. Se o seu negócio é curtir uma estradinha sinuosa e bucólica, ligue o Waze e descubra se os domingueiros vão arruinar seu passeio. Abra o Street View e veja como ela é antes de perder tempo indo até lá. Troque opiniões e dicas em comunidades virtuais.
Fugindo do congestionamento, o Waze me apresentou a esta bela estradinha deserta
Falando em virtual… lembra quando sua leitura automotiva era segmentada por mês e limitada por edições publicadas? Pois agora ela é virtualmente infinita. Se você está chegando ao FlatOut hoje, por exemplo, irá encontrar mais de 4.660 posts. Considerando que você leva cinco minutos para ler cada um deles, será preciso duas semanas e meia para ler tudo sem parar para coisas importantes como comer, dormir, tomar banho e trabalhar. E quando terminar, nem pense em descansar: teremos mais 85 posts novos para você ler.
E isso só no FlatOut. Ainda tem o Projeto Motor, o Carplace, o Grande Prêmio e todos os demais sites que você provavelmente acompanha. Significa que sua leitura automotiva agora é infinita. Você só para de ler pelo cansaço ou por ter algo mais urgente a fazer, e não porque já leu e releu todas as publicações que estavam à venda nas bancas naquele mês.
Quando cansar de ler, você tem três opções: ligar a TV nos canais dedicados integralmente a programas de carros (são dezenas deles, nem todos bons, mas é melhor que assistir à novela, não?), ligar seu computador nos canais do YouTube ou ligar o video-game e dirigir virtualmente na sala de estar.
Cada vez mais realistas, os games e simuladores já há ligas semi-profissionais e até um campeonato organizado pela FIA, que irá profissionalizar o negócio e até mesmo te colocar na cerimônia de premiação ao lado dos campeões do WEC, F1, WRC etc. Isso se você não acabar transformado em um piloto de carros reais — Jann Mardenborough e Lucas Ordoñez que o digam.
No passado os carros duravam pouco, não eram capazes de acelerar, frear ou curvar como hoje. Eles eram inseguros e nem eram tão rápidos quanto paracem. Um Mustang V8 302 1968 — aquele de Bullitt — é tão rápido quanto um Toyota Camry V6 em aceleração e velocidade máxima. Não havia óleo sintético, não havia tecnologia para construir carros e motores com folgas mínimas, não havia pneus aderentes e duráveis como hoje, as pastilhas de freio duravam menos, as correias precisavam ser trocadas em intervalos inadmissíveis atualmente, um pedrisco destruía seu para-brisa…
Camry V6: zero a 100 km/h em pouco mais de seis segundos
Sim, os clássicos são legais para curtir num fim de semana, mas isso só é possível neste presente em que eles se tornaram clássicos. E eles só são legais porque você não precisa dirigi-los mais o tempo todo. Porque eles têm o fator nostalgia. E mais: em um carro moderno você não morre por bater em uma placa de trânsito.
Acredite: estamos vivendo uma época como nenhuma outra para os fãs de carros. É possível que o futuro seja realmente sombrio — infelizmente temos que esperar que ele aconteça para descobrir — e o passado não era tão melhor quanto parece. Sabe aquele clichê de que os carros de hoje não são mais como antigamente, talvez o problema não sejam os carros e sim aquela sensação nostálgica por uma época que você não viveu — ou viveu e era mais feliz. Pare por um instante e admire a paisagem: do espertinho up! TSI e do surpreendente Sandero RS ao McLaren P1 e à LaFerrari, o mundo moderno está cheio de carros que você vai curtir — e vai curtir tanto que, daqui a 30, 40 anos, terá saudade dos bons tempos de 2016.